segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Casa da Malta retrata o passado de São Pedro da Cova - “Museu lembra vida nas minas”

“As minas de São Pedro da Cova encerraram na década de 60, mas reabriram, como museu, para perpetuar a memória de gerações de operários”.




“A Casa da Malta guarda muitas histórias mineiras de São Pedro da Cova, em Gondomar. Renasceu depois do 25 de Abril, como museu, a fim de perpetuar a memória dos que sofreram a exploração fascista.

David Rodrigues, de 80 anos, é o zelador. Nunca trabalhou nas minas, mas viveu, pelo sofrimento de familiares e amigos, a brutal exploração dos operários – «toupeiras humanas debaixo do chão», como ele lhes chama num dos seus poemas.
As minas, com quase século e meio de actividade, encerraram na década de 60. Debandaram os malteses ainda mais pobres do que quando chegaram. O dormitório onde pernoitaram, exaustos, minados pela doença, em celas exíguas sobre enxergas de fetos, também fechou portas. Reabriu depois da Revolução de Abril, como museu, para lhes perpetuar a memória.
É aqui, na Casa da Malta, que David Rodrigues passa os dias a explicar aos mais novos as histórias dos mineiros de São Pedro da Cova. À entrada, no jardim, está «a viúva», o eléctrico negro que transportava o carvão para o Porto. No interior, no rés-do-chão, há uma vagoneta carregada, além da reconstituição da entrada da mina e de todos os utensílios, desde o picão à lanterna, utilizados pelos mineiros.
O preto e branco de fotografias expostas nas paredes mostram-nos o trabalho das mulheres: empurram vagonetas e britam pedras de carvão. Vislumbram-se rostos tristes, de quem sofre em silêncio. No andar de cima há amostras de carvão e de outros materiais fossilizados. E uma cela intacta, a enxerga e a janela estreita, lá no alto.
«O mineiro saía da mina e entrava neste buraco», esclareceu David Rodrigues ao nosso jornal.
Em espaço próprio, David Rodrigues guarda o arquivo da companhia. São milhares de fichas com o cadastro dos operários, ao lado de outras pastas com inquéritos quase policiais aos trabalhadores e a indicação das sanções aplicadas. No ano de 1959, um operário foi surpreendido pelo capataz com cinco pinheiros, «furtados da floresta da companhia, onde já se encontravam cortados pelo nosso pessoal» – conforme se pode ler numa informação ao director técnico da mina. O capataz propôs como castigo ao «infractor» uma pena de três dias de suspensão. O director rubricou essa informação e no local próprio da ficha confirmou a pena.
Num outro documento é acusado um determinado mineiro de ter partido a parte de vidro que resguardava uma lâmpada eléctrica. «O arguido», refere a acusação, «revelou falta de cuidado. Proponho que a substituição da lâmpada seja feita à custa do operário, a fim de evitar abusos no futuro.» O director concordou com a pena. Teve, então, o operário de pagar «a importância de 30 escudos». Muito dinheiro para quem, na década de 40, ganhava 21 escudos diários – se estivesse na categoria de mineiro de primeira. As penalizações são múltiplas e, no mínimo, surrealistas.
Houve mineiros, conta-nos David Rodrigues, que abandonaram a mina sem receberem o salário.
Mesmo assim, refere, ainda ficaram em débito com a companhia. Porque o rol de infracções a descontar no ordenado é imenso: largar o trabalho sem avisar o superior, não ter minado o espaço marcado pelo capataz, sair da mina descalço, entre outras.

Solidariedade de um cavalo

Foram longos anos de exploração, de chantagem, de prepotência. Em 1946, pelo menos, os mineiros uniram-se e levantaram-se contra «o patronato nazi-fascista». A história vem contada num folheto do Partido Comunista Português, guardado com zelo na Casa da Malta.
«As condições de trabalho destes operários», diz o folheto, «são as piores que se conhecem. Sem condições higiénicas, trabalhando num calor de forno, saem da mina para o frio e para a chuva descalços e sem qualquer agasalho que os defenda!»
A maioria dos trabalhadores recebe «menos do que 21 escudos diários» e os salários «estão sujeitos a grandes descontos»: quem ganhar 21 escudos tem um desconto diário de oito por cento, mas precisa ainda de descontar 7,5 escudos por semana para o carboneto, e 2,5 para o sindicato – «à frente do qual se encontrava o grande traidor da classe operária, António de Espinho».
Neste levantamento, o que estava em causa era a exigência de um «aumento dos salários, de mais géneros e de melhores condições de vida. Os incidentes, porém, acabaram com a prisão de quatro mineiros. «Mas os seus camaradas, companheiras e filhos, acorreram imediatamente ao posto» e conseguiram, com êxito, a liberdade de detidos.
O zelador da Casa da Malta guarda o folheto dentro de um envelope. Foi o filho de um engenheiro, diz à nossa reportagem, quem «ofereceu este exemplar». Conta-nos, depois, o número de vezes que passou pela Rua do Heroísmo, a delegação da Pide no Porto. E a história surpreendente de um cavalo.
Chamava-se Leal e o seu trabalho era puxar vagonetas carregadas de carvão. Parava, porém, quando chegava a hora de almoço dos operários. E ninguém o demovia, também, se a carga fosse superior ao habitual. «Há animais», comenta David Rodrigues, «mais solidários do que certos homens»”.

MANGAS, Francisco, “Museu lembra vida nas minas”, Diário de Notícias, 1994-10-24

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